HISTÓRIA: Depois de 1808, 1822 e 1889, Laurentino Gomes faz trilogia sobre escravidão

“O Brasil tem seu corpo na América, mas sua alma na África”. A frase é de autoria de um dos pensadores mais importantes do Brasil Colônia, o Padre Antônio Vieira, e sintetiza a importância dos afrodescendentes na história do país. É essa citação também que estará na epígrafe do primeiro volume de Escravidão, a nova trilogia literária do escritor Laurentino Gomes que vai abordar a história dos trabalhadores que foram trazidos da África para o território brasileiro, sendo responsáveis pela formação de uma grande parcela da população.

O primeiro livro, que tem como título Do primeiro lote de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, será lançado no fim de agosto, durante a XIX Bienal Internacional do Livro, no Rio de Janeiro. Desde junho, porém, Laurentino vem usando as redes sociais para apresentar uma prévia do que aguarda seus leitores. Três vezes por semana ele divulga, no Instagram, Twitter e Facebook, vídeos curtos, com duração máxima de um minuto, nos quais mostra bastidores de sua pesquisa e narra alguns episódios que farão parte do livro.

Nada mais natural do que usar uma ferramenta popular como as redes sociais para alguém que transformou a história do Brasil, geralmente associada a livros didáticos, em fenômeno de vendas. Nascido em Maringá, no norte do Paraná, Laurentino se formou em jornalismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e trabalhou na imprensa por três décadas. Em 2007 lançou seu primeiro livro, 1808, que narra a fuga da corte de D. João VI para o Brasil. O sucesso estrondoso abriu as portas para outras duas obras, 1822, sobre a independência, e 1889, sobre a proclamação da República. A trilogia vendeu mais de 2,5 milhões de exemplares e rendeu seis prêmios Jabuti, o mais importante da literatura brasileira.

Em maio de 2015, o escritor anunciou o projeto seguinte, uma trilogia sobre a escravidão. “Eu acredito que, 127 anos depois da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel, esse é um passivo histórico que os brasileiros ainda não conseguiram resolver”, afirmou à época, ao explicar a escolha do tema. Nesses quatro anos, se dedicou a uma extensa pesquisa, realizada em 12 países – oito deles na África. Após o lançamento do primeiro volume, em agosto, os dois seguintes serão publicados em 2020 e 2021. O segundo intitulado Da corrida do ouro em Minas Gerais à chegada da corte do D. João no Rio de Janeiro, e o terceiro, Da independência à Lei Áurea.

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Raízes africanas
“É quase impossível entender o Brasil de hoje sem conhecer as nossas raízes na África”, diz Laurentino em um dos vídeos divulgados na internet. O escritor conta que passou por Cabo Verde, Senegal, Angola, Gana, Marrocos, Benin, Moçambique e África do Sul para pesquisar a origem da escravidão. Nesses locais, mostra alguns locais simbólicos, como Luanda, capital de Angola e maior porto de escravos da história, e Cabo Verde, que funcionou como uma espécie de laboratório da escravidão no Atlântico.

Outro episódio de destaque é o que mostra o Museu Nacional da Escravatura, situado em Luanda. O que no passado foi a residência de um grande traficante de escravos hoje funciona como um centro pedagógico, por onde passam milhares de estudantes que aprendem sobre o tráfico de pessoas para a América. “É também uma lição para nós, brasileiros. O Brasil foi o maior território escravagista da América e até hoje não temos um grande museu da escravidão. O que é lamentável”, observa Laurentino.

Em território brasileiro, o escritor também mostra locais com histórias impressionantes relacionadas à escravidão. O Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, hoje é um sítio tombado como patrimônio histórico pela Unesco, mas foi o maior mercado de escravos da América no início do século 19. Ali desembarcavam cerca de 18 mil escravos africanos por ano. Também na capital fluminense, um casal fez uma descoberta surpreendente em 1996, quando reformava um imóvel: um cemitério de “pretos novos”, escravos recém-chegados ao Brasil. Ali foi instalado então o Instituto dos Pretos Novos, um museu dedicado à escravidão.

Estatísticas chocantes
Em sua pesquisa, Laurentino levantou dados chocantes sobre a escravidão no Brasil. Ao longo de sua história, o país importou entre 4,5 milhões e 5 milhões de escravos da África. Porém, uma parte significativa daqueles que embarcavam no território africano acabava morrendo antes de chegar ao Brasil. Ao longo de 350 anos, estima-se que cerca de 2 milhões de pessoas morreram no mar.

“Existe um pesquisador americano chamado Joseph Miller, que escreveu um livro chamado Way of Death [O caminho da morte], em que ele estimou: de cada dois africanos capturados em guerras, sequestros, razias, no interior da África, só um chegava vivo no litoral para ser embarcado no navio negreiro. A mortalidade nos navios negreiros era em torno de 20% até chegar ao Brasil. Aqui, mais 5% morriam antes de ser leiloados. E mais 20% morriam nos três primeiros anos nos seus locais de trabalho. De maneira que, de cada três escravos capturados na África, só um sobrevivia mais de três anos na chegada ao Brasil”, disse Laurentino em uma palestra que fez na Biblioteca Pública do Paraná no fim do ano passado.

No mesmo evento, o escritor falou sobre o que o levou a mergulhar de cabeça em um trabalho sobre os escravos. “O Brasil foi o último país do hemisfério ocidental a acabar com o tráfico negreiro, em 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz, e a acabar com a escravidão em 1888, com a Lei Áurea. Ou seja, o Brasil resistiu o quanto pôde acabar com a escravidão”, observou.

“E o Joaquim Nabuco [político, diplomata e historiador do século 19] dizia que não adiantava abolir a escravidão, era preciso acabar com os traços da escravidão na sociedade brasileira, ou seja, educar os ex-escravos, seus descendentes, lhe dar terras, oportunidades, incorporá-los à sociedade brasileira na condição de cidadãos de pleno direito, com iguais oportunidades. O Brasil não fez isso. O Brasil aboliu a escravidão e abandonou seus escravos e a sua população negra à sua própria sorte. Ou seja, empurramos com a barriga um problema gigantesco que nós acumulamos ao longo de 350 anos”, diz.” #Cultura

GAZETA DO POVO

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