ENTREVISTA: Os segredos do conclave que elegeu Francisco papa e gerou ‘um terremoto’ na Igreja Católica

O papa Francisco foi eleito em 2013, após a súbita renúncia de Bento 16 — Foto: Getty Images via BBC

Poucos previam que, no conclave de 2013, Jorge Bergoglio se tornaria papa, mas o jornalista irlandês Gerard O’Connell, que há 20 anos cobre o Vaticano e conhecia o argentino muito antes de ele se tornar pontífice, acertou o resultado.

Agora, ele revela no livro “A Eleição do Papa Francisco: Um relato íntimo do conclave que mudou a história” os segredos daquela eleição que deixou o mundo boquiaberto ao levar não só o primeiro latino-americano mas também o primeiro jesuíta a liderar os mais de 1,2 bilhão de fiéis da Igreja Católica no mundo.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Mundo: Os cardeais que participam do conclave não só ficam isolados do mundo como são obrigados a guardar segredo sobre as votações. Como conseguiu desvendar o que ocorreu na ocasião?
Gerard O’Connell:
 Cubro o Vaticano desde 1985 e, ao longo deste anos, criei relações pessoais de confiança com muitos cardeais de todos os continentes. Os cardeais perceberam que houve naquele conclave uma mudança equivalente a um terremoto na Igreja, e alguns deles queriam que as pessoas soubessem como isso aconteceu, então, compartilharam informações comigo para deixar isso registrado na história.

BBC News Mundo: Quando os papas João 23, Paulo 6º e João Paulo 2º morreram, os cardeais buscavam há algum tempo um sucessor. No entanto, quando em 11 de fevereiro de 2013, Bento 16 anunciou sua renúncia, a notícia surpreendeu o mundo. Esse “fator surpresa” influenciou de alguma forma a eleição de Bergoglio?
O’Connell:
 O anúncio da renúncia de Bento 16, o segredo mais bem guardado de seu pontificado, pegou os cardeais completamente de surpresa. Eles não estavam preparados para um conclave e só tiveram 30 dias para eleger um novo papa. A súbita renúncia de Bento 16 significou que não houve tempo para as manobras de lobby que precederam o conclave de 2005 (quando Bento 16 foi eleito).

O’Connell trata em seu livro dos bastidores da eleição do atual líder da Igreja Católica — Foto: Arquivo Pessoal

BBC News Mundo: O pontificado de Bento 16 foi marcado por diversos escândalos, incluindo o famoso Vatileaks. Isso contribuiu de alguma forma para os cardeais serem claros sobre que tipo de papa não queriam?
O’Connell: 
Quando os cardeais se reuniram para eleger o novo papa, tentaram entender o pano de fundo dos escândalos que vieram à tona durante o pontificado de Bento 16. Vários cardeais perceberam que os escândalos eram principalmente relacionados aos italianos, então, concluíram que um candidato que não fosse poderia ser mais indicado para resolver esses problemas.

Outros achavam ser necessário alguém que pudesse administrar a Cúria Romana e governar a Igreja. Mas, em nível mais profundo, muitos consideraram os escândalos como resultado de uma crise espiritual e sentiram a necessidade de escolher como papa um homem verdadeiramente santo, um “homem de Deus”, em vez de um gerente ou administrador, alguém que pudesse realizar uma reforma espiritual no Vaticano e na Igreja.

BBC News Mundo: Quando o conclave começou, as apostas apontavam como favoritos ao italiano Scola, o canadense Ouellet e o brasileiro Scherer. A possibilidade de que o arcebispo de Buenos Aires se tornasse papa nem sequer era cogitada. Quando seu nome começou a surgir como uma possibilidade?
O’Connell:
Na véspera do conclave, estes três eram os grandes favoritos. No entanto, muitos cardeais sentiram que nenhum deles oferecia uma liderança verdadeiramente inspiradora e que traria uma nova visão e energia para a Igreja, então, procuraram uma alternativa capaz disso.

O nome de Bergoglio surgiu neste contexto. Dos 115 cardeais eleitores, 68 participaram do conclave de 2005, no qual Bergoglio ficou em segundo lugar, e eles sabiam que era um homem profundamente espiritual, não ambicioso, que vivia de uma forma muito simples e austera, que professava um enorme amor aos pobres e que visitava regularmente as favelas de Buenos Aires.

BBC News Mundo: Mas em que momento particular o nome de Jorge Bergoglio começou a soar como o de um possível papa?
O’Connell: 
Antes do início do conclave, ocorrem as chamadas congregações gerais, nas quais os cardeais se preparam para a eleição do pontífice. No penúltimo desses encontros, Bergoglio chamou a atenção de muitos com uma fala de três minutos e meio que foi considerada inspiradora, revigorante e visionária. Suas palavras tiveram um impacto enorme e, a partir desse momento, muitos começaram a vê-lo como o novo papa.

BBC News Mundo: O fato de ser latino-americano contou a seu favor?
O’Connell: 
Sim, por vários motivos. Primeiro, Bergoglio já havia emergido como líder da Igreja na América Latina na Conferência Episcopal Latino-Americana (Celam) realizada em Aparecida, no Brasil, em 2007. Segundo, Bergoglio foi presidente da Conferência Episcopal Argentina por dois mandatos e demonstrou ter boas habilidades de liderança. E terceiro, praticamente todos os cardeais latino-americanos falaram bem dele. Além disso, quase 50% dos católicos do mundo falam espanhol, e a grande maioria deles vive na América Latina. Já no conclave de 2005, muitos votaram em Bergoglio.

Em seu livro, O’Connell revela algumas das reuniões secretas em que a eleição de Bergoglio foi discutida — Foto: Divulgação

BBC News Mundo: Já na primeira votação do conclave, houve uma grande surpresa. O italiano Scola, favorito em quase todas as apostas e considerado o preferido de Bento 16, não conseguiu o número de votos que esperava receber. Por quê?
O’Connell: 
Houve várias razões. A primeira é que os cardeais italianos (que constituíam o maior bloco do conclave com um total de 28 votos) estavam profundamente divididos em relação a Scola. Alguns se opunham fortemente à sua eleição. Vários cardeais também se sentiram desconfortáveis por causa dos laços que Scola mantinha com o movimento conservador Comunhão e Libertação.

Além disso, muitos cardeais sentiram que Scola tinha problemas para se comunicar com as pessoas, porque usava uma linguagem complicada. E uma outra razão foi ele ser visto como o preferido de Bento 16, com quem ele estava muito alinhado teologicamente. Muitos cardeais pensaram que, se Scola fosse eleito papa, do ponto de vista teológico, seria mais do mesmo.

BBC News Mundo: A noite após a primeira votação parece ter sido fundamental, porque, no dia seguinte, Bergoglio já era o mais votado. O que aconteceu naquela noite?
O’Connell:
 Na primeira votação, enquanto Scola obteve 30 votos (muito menos do que o esperado), Bergoglio surpreendeu muitos cardeais ao receber 26. A julgar pelos resultados, ficou claro que uma grande número de eleitores não sabia em quem votar, mas, quando Bergoglio emergiu tão fortemente, muitos interpretaram como um sinal de Deus e o apoiaram na segunda votação, colocando-o na liderança e dando-lhe uma vantagem que ele nunca perdeu.

BBC News Mundo : Seu livro fala sobre jantares secretos que fizeram a balança pender a favor de Bergoglio. Quais jantares foram esses?
O’Connell:
Como mostra a história dos conclaves do século 20, cardeais com a mesma opinião ou que falam a mesma língua frequentemente se reúnem em jantares ou reuniões privadas em lugares longe do público para discutir os nomes dos potenciais candidatos a serem o próximo papa e os desafios a serem enfrentados. Tais reuniões ou jantares são chamados de “secretos” porque geralmente são desconhecidos pela mídia e até mesmo pelos cardeais que não estão neles. São eventos importantes, porque oferecem aos cardeais a oportunidade de debater livremente e compartilhar confidências.

Em meu livro, menciono especificamente uma reunião, não um jantar, na véspera do conclave, no apartamento do Vaticano de Attilio Nicora, um cardeal italiano que trabalha na Cúria Romana, no qual muitos cardeais de diferentes continentes se reuniram para discutir a situação, e lá todos pensaram que Bergoglio seria o melhor candidato e o apoiaram.

BBC News Mundo: Em todos os conclaves existem os “kingmakers”, os “fazedores de rei”, cardeais que guiam os outros e indicam em quem devem votar. Quem foram os “kingmakers” do conclave que elegeu Bergoglio?
O’Connell
: Como a maioria dos cardeais que participam de um conclave não se conhecem bem, eles dependem dos “fazedores de rei” para obter orientação sobre possíveis candidatos. São cardeais que conhecem muitos cardeais (talvez todos) e nos quais seus colegas confiam para fornecer informações sobre os candidatos. Havia vários desses cardeais no conclave de 2013, incluindo Bagnasco (Itália), Maradiaga (Honduras), Murphy-O’Connor (Reino Unido), Gracias (Índia), Monswengo (República Democrática do Congo), Turkson (Gana) e Hummes (Brasil).

O arcebispo de Milão, Angelo Scola, era um dos favoritos para suceder Bento 16 — Foto: AFP

BBC News Mundo: Como Bergoglio reagiu a tudo isso? Ficou nervoso ao ver que poderia se tornar papa? Ele fez campanha de alguma forma?
O’Connell: 
Não houve campanha a favor de Bergoglio naquele conclave. Além disso, ele nunca teria concordado com uma campanha assim. Seu nome como candidato surgiu lentamente e apenas nos dias antes de os cardeais entrarem na Capela Sistina para votar.

O nome de Bergoglio surgiu porque muitos dos cardeais estavam à procura de uma mudança radical e perceberam que os três favoritos nunca fariam isso. Bergoglio, por sua vez, nunca pensou que seria papa. Havia comprado uma passagem de avião para voltar a Buenos Aires e preparado a homilia para a missa da Quinta-Feira Santa, por isso estava tranquilo. Só percebeu que poderia se tornar papa após a terceira votação.

BBC News Mundo: No conclave, também houve vários cardeais que se opuseram à eleição de Bergoglio e que conseguiram divulgar falsas notícias sobre ele para tentar impedir que se tornasse papa. O que eles detestavam em relação a Bergoglio?
O’Connell:
 Houve alguma oposição a Bergoglio no conclave por parte daqueles que não gostavam de seu estilo de vida simples e austero e seu compromisso com os pobres e de outros que não gostavam de sua atividade como missionário, sua ideia de uma Igreja que vai às periferias, e por ser alguém que instruiu os padres em Buenos Aires a batizar os filhos de mães solteiras.

BBC News Mundo: Os inimigos de Bergoglio durante o conclave são hoje inimigos do papa Francisco? Quem são e o que querem?
O’Connell:
 Vários participantes do conclave me disseram que a oposição a Bergoglio no último conclave foi muito mais fraca do que a Ratzinger no conclave de 2005. Embora a oposição a Francisco tenha sido uma minoria em 2013, ganhou força desde então devido à sua abertura a pessoas divorciadas e que se casaram novamente, às pessoas LGBT, sua atenção aos pobres, sua crítica à economia, sua posição sobre imigração, sua oposição às armas nucleares, ao comércio de armas e à pena de morte. No entanto, hoje, apesar das aparências, a oposição vem de uma minoria relativamente pequena entre cardeais, bispos e leigos.

BBC News Mundo: O senhor fala de Francisco como um homem santo. No entanto, vítimas de abuso sexual por padres reclamam que ele não está fazendo o suficiente para acabar com esse flagelo.
O’Connell: 
Acho importante entender que o problema do abuso infantil por padres existia na Igreja Católica muito antes de Francisco ser papa. Como vários estudos mostram, a maioria dos abusos ocorreu entre os anos 1950 e 1990, especialmente nos anos 1970 e 1980, durante o pontificado de João Paulo 2º. O número de novos casos diminuiu significativamente durante o pontificado de Bento 16, e, desde que Francisco foi eleito, a grande maioria dos casos que vieram à luz são antigos, ocorridos décadas atrás.

BBC News Mundo: Mas Francisco está fazendo o suficiente para acabar com isso?
O’Connell:
 É difícil dizer o que seria fazer o suficiente para eliminar os abusos contra menores, uma vez que é algo difundido na sociedade, mas muitas vezes não falamos disso. Francisco fez muitas coisas para tentar erradicar esse problema da Igreja. Ele se encontrou pessoalmente com mais vítimas do que qualquer antecessor, e praticamente toda semana se encontra com alguma. É algo que muitas pessoas não sabem. Em 2016, ele introduziu uma legislação na Igreja que torna possível remover um bispo que oculta abusos ou não protege menores.

BBC News Mundo: Mas as vítimas de abuso reclamam que ainda é muito difícil levar um padre acusado disso aos tribunais comuns. Como o senhor avalia isso?
O’Connell:
 Isso foi especialmente verdade no passado, mas a situação mudou consideravelmente com Francisco. Ele permitiu que o cardeal George Pell voltasse à Austrália para ser julgado, ainda que, como funcionário do Vaticano, pudesse ser reivindicada imunidade diplomática. Ele tirou Theodore McCarrick do colégio de cardeais e do sacerdócio. Permitiu que o cardeal Philippe Barbarin fosse julgado na França por supostamente encobrir abusos. E, em um novo decreto executivo de 9 de maio, diz claramente que os líderes da Igreja devem seguir as leis de seus respectivos países e que, se a lei exigir, denunciem aqueles que abusam de crianças para autoridades civis.

BBC News Mundo: O papa Francisco tem 82 anos. O senhor já pensa em quem pode ser seu sucessor?
O’Connell:
 O papa Francisco goza de boa saúde. Desfruta de uma grande paz interior e tem uma energia extraordinária para um homem da sua idade. Não há um conclave no horizonte. Além disso, não se pode saber quem serão os candidatos reais até que haja uma lista final de cardeais eleitores. Dos cardeais que escolherão seu sucessor, 47% foram nomeados por Francisco, e ele nomeará mais antes do final do ano. Portanto, é bem possível que seu sucessor ainda não seja cardeal.

BBC News Mundo: Acha possível que Francisco siga os passos de Bento 16 e renuncie em algum momento?
O’Connell:
É possível, mas não acho que isso aconteça a menos que tenha uma doença grave. Estou convencido de que ele morrerá como papa. #Cotidiano

G1/ BBC

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